A espetacularização e a ideologização do Judiciário


04/10/2012

É com  muita tristeza que escrevo este artigo no final da tarde desta quarta-feira, após acompanhar as falas dos ministros do Superemo Tribunal Federal. Para não me aborrecer com e-mails rancorosos vou logo dizendo que não estou defendendo a corrupção de políticos do PT e da base aliada, objeto da Ação Penal  470 sob julgamento no STF.  Se malfeitos foram comprovados, eles merecem as penas cominadas pelo Código Penal. O rigor da lei se aplica a todos.
Outra coisa, entretanto, é a espetacularização do julgamento transmitido pela TV. Ai é ineludível a feira das vaidades e o vezo ideológico que perpassa a maioria dos discursos.
Desde A ideologia Alemã, de Marx/Engels (1846), até o Conhecimento e interesse, de J. Habermas (1968 e 1973), sabemos que por detrás de todo conhecimento e de toda prática humana age uma ideologia latente. Resumidamente, podemos dizer que a ideologia é o discurso do interesse. E todo conhecimento, mesmo o que pretende ser o mais objetivo possível, vem impregnado de interesses.
Pois, assim é a condição humana. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. E todo o ponto de vista é a vista de um ponto. Isso é inescapável. Cabe analisar política e eticamente o tipo de interesse, a quem beneficia e a que grupos serve e que projeto de Brasil tem em mente. Como entra o povo nisso tudo? Ele continua invisível e até desprezível?
A ideologia pertence ao mundo do escondido e do implícito. Mas há vários métodos que foram desenvolvidos, coisa que exercitei anos a fio com meus alunos de epistemologia em Petrópolis, para desmascarar a ideologia. O mais simples e direto é observar a adjetivação ou a qualificação que se aplica aos conceitos básicos do discurso, especialmente, das condenações.
Em alguns discursos, como os do ministro Celso de Mello, o ideológico é gritante, até no tom da voz utilizada. Cito apenas algumas qualificações ouvidas no plenário: o mensalão seria “um projeto ideológico-partidário de inspiração patrimonialista”, um “assalto criminoso à administração pública”, “uma quadrilha de ladrões de beira de estrada” e um “bando criminoso”. Tem-se a impressão de que as lideranças do PT e até ministros não faziam outra coisa que arquitetar roubos e aliciamento de deputados, em vez de se ocuparem com os problemas de um país tão complexo como o Brasil.
Qual o interesse, escondido por detrás de doutas argumentações jurídicas? Como já foi apontado por analistas renomados do calibre de Wanderley Guilherme dos Santos, revela-se aí certo preconceito contra políticos vindos do campo popular. Mais ainda: visa-se aniquilar toda a possível credibilidade do PT, como partido que vem de fora da tradição elitista de nossa política; procura-se indiretamente atingir seu líder carismático maior, Lula, sobrevivente da grande tribulação do povo brasileiro e o primeiro presidente operário, com uma inteligência assombrosa e habilidade inegável.
A ideologia que perpassa os principais pronuncia políticamentos dos ministros do STF parece eco da voz de outros, da grande imprensa empresarial que nunca aceitou que Lula chegasse ao Planalto. Seu destino e condenação é a Planície. No Planalto poderia penetrar como  faxineiro e limpador dos banheiros.  Mas nunca como presidente.
Ouvem-se no plenário ecos vindos da Casa Grande, que gostaria de manter a Senzala sempre submissa e silenciosa. Dificilmente, se tolera que através do PT os lascados e invisíveis começaram a discutir política e a sonhar com  a reinvenção de um Brasil diferente. Tolera-se um pobre ignorante e mantido politicamente na ignorância. Tem-se verdadeiro pavor de um pobre que pensa e que fala. Pois, Lula e outros líderes populares  ou convertidos à causa popular como João Pedro Stedile, começaram a falar e a implementar políticas sociais que permitiram uma Argentina inteira ser inserida na sociedade dos cidadãos.
Essa causa não pode estar sob juízo. Ela representa o sonho maior dos que foram sempre destituídos. A Justiça precisa tomar a sério esse anseio a preço de se desmoralizar, consagrando um status quo que nos faz passar internacionalmente vergonha. Justiça é sempre a justa medida, o equilíbrio entre o mais e o menos, a virtude que perpassa todas as virtudes (“a luminossísima estrela matutina” de Aristóteles). Estimo que o STF não conseguiu manter a justa medida. Ele deve honrar essa justiça-mor que encerra todas as virtudes da polis, da sociedade organizada. Então, sim, se fará justiça neste país.
* Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é professor aposentado de ética da Uerj
fonte  /leonardoboff.wordpress.com

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