Famílias de vítimas amargam dificuldade na punição de crimes no trânsito



Famílias de vítimas amargam dificuldade na punição de crimes no trânsitoDepois da dor de perder parentes em acidentes, famílias descobrem o quanto é difícil conseguir punição de responsáveis, a maioria viajantes em trânsito pela região do desastre. Processos dependem de outras comarcaS e, quando chegam ao fim, levam anos
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Maurício Lara - Estado de Minas
Publicação: 11/09/2011 07:02 Atualização: 11/09/2011 07:16
Veículo destruído por bobina de aço na BR-381: autoridades consideram que condições da rodovia são responsáveis por muitos desastres (Renato Weil/EM/D.A Press. Brasil 24/02/2010)
Veículo destruído por bobina de aço na BR-381: autoridades consideram que condições da rodovia são responsáveis por muitos desastres
Em seus 76 anos, a cozinheira Helena Coelho Fidélis teve 18 filhos. Três, perdeu atropelados, todos na BR-040, nas imediações do trevo de acesso à comunidade de Buarque de Macedo, em Conselheiro Lafaiete, Região Central do estado, onde a família vive. A primeira foi Roseli, “uma moça lindona”, como define a mãe. Talvez até como um mecanismo de defesa, dona Helena tem dificuldade de lembrar a data. Mas sabe que sua menina partiu aos 22 anos. O segundo foi José Luiz. Esse ela recorda que se foi em 2005. Quando parecia já não caber mais tristeza na casa humilde, na beira da linha do trem, veio outro baque. Naquele mesmo ano, poucos meses depois, morreu o terceiro integrante da família. Paulo Roberto Fidélis foi levado pela rodovia aos 44 anos. A mãe nunca recebeu nada além dos corpos para enterrar. Para ela, ficou a dor interminável de quem nem sequer foi informado sobre a culpa nos acidentes e menos ainda teve direito a qualquer tipo de indenização. A cozinheira não está sozinha: compõe um grande mas silencioso grupo de pessoas que nunca souberam quem levou a vida de seus parentes em alguns dos milhares de desastres que acontecem a cada ano no estado de maior malha rodoviária do país.

O fenômeno é comum a todos os municípios cortados por estradas, mas há algumas – como a BR-381, no trecho entre Belo Horizonte e João Monlevade, e a BR-040, em trechos próximos a Ouro Preto, Congonhas e Conselheiro Lafaiete – em que o problema é maior, por causa do volume de ocorrências. Foi essa última estrada que mutilou a família de dona Helena. “Eu choro sozinha por causa deles. É a paixão que eu tenho na minha vida, de ver filho morrer de um jeito tão triste. A gente fica em tempo de cair e morrer junto”, lamenta a cozinheira. Se procurasse saber como andam as apurações sobre as três mortes, ela descobriria, por exemplo, que o inquérito aberto para apurar o atropelamento de Paulo Roberto, mesmo depois de seis anos, está parado na Delegacia de Trânsito de Lafaiete, porque carta precatória para ouvir uma testemunha em Cabo Frio (RJ), reiterada várias vezes, jamais foi cumprida. “O inquérito fica amarrado”, diz a delegada Mary Milagre de Almeida Vieira, que pretende encaminhar o processo à Justiça sem o depoimento da testemunha, para evitar a prescrição pela passagem de tempo.

Processos como esse são sempre lentos, penosos. Consomem muito tempo e sofrimento até que as delegacias consigam ouvir todos os envolvidos e concluir o inquérito. A juíza Miriam Vaz Chagas, da 2ª Vara Cível e Criminal de Caeté, na Grande BH, diz que “raramente” os autos referentes a algum acidente na vizinha BR-381 chegam às suas mãos menos de um ano depois do ocorrido. Já a juíza Cláudia Regina Macegosso, da 1ª Vara, calcula que, do desastre ao julgamento, se tudo correr normalmente, terão se passado de três a quatro anos. Pode ser pior: há casos extremos, que demoram muito mais, pela dificuldade de encontrar e ouvir, por carta precatória, réus e testemunhas em outras comarcas.

Vão parar na delegacia de Caeté os autos referentes a acidentes com vítimas entre os kms 406 e 434 da chamada Rodovia da Morte, num total de apenas 28 quilômetros – 10 em Caeté, 18 em Nova União. Referentes ao primeiro trecho, são cerca de seis encaminhamentos por mês. O número dobra em períodos chuvosos e de férias.

“Raramente os envolvidos moram nas comarcas. O inquérito é trabalhoso, demorado, complexo. Depende de outras delegacias e, não raro, de outro estado, e aí é mais difícil ainda”, diz o delegado de Caeté, Bruno Affonso. Uma carta precatória para ouvir um cidadão fora de Minas pode demorar mais de um ano para ser respondida. Isso quando os endereços estão corretos e as testemunha ou réus são encontrados com facilidade. Quando os dados não conferem, o prazo do inquérito vai para o terreno do imprevisível.

Há casos em que os mesmos envolvidos têm que ser ouvidos no inquérito e, depois, quando o processo está em fase de instrução para julgamento. Não raro, alguém é ouvido pela Polícia Civil, mas, depois de oferecida a denúncia, não é mais encontrado. Aí, para tudo. “Já julguei processo de 2002. Já decretei prescrição pela dificuldade ou impossibilidade de localização das pessoas”, admite a juíza Miriam Chagas, depois de dois anos na comarca.

Corrida contra a impunidade

A demora na tramitação dos inquéritos e processos judiciais envolvendo causadores de acidentes nas rodovias leva as autoridades a conviver cotidianamente com a ameaça de prescrição do crime. No caso de lesões corporais, em que a pena é menor – de seis meses a dois anos de reclusão –, a prescrição ocorre depois de quatro anos. No caso de homicídio culposo – pena de 2 a 4 anos –, o prazo é o dobro. Diante desse risco, um recurso de que os magistrados vêm lançando mão é o de suspender o prazo de prescrição até que os envolvidos sejam encontrados.

No fórum de Caeté, na Grande BH, que recebe os casos relativos a desastres em um dos trechos mais críticos da BR-381, a chamada Rodovia da Morte, há um processo referente a acidente ocorrido em 12 de outubro de 1998. Consta dos autos que um Honda Civic em alta velocidade, com tempo chuvoso, rodou na pista e parou na contramão. O motorista de outro automóvel, ao desviar, bateu em um caminhão, em desastre que causou duas mortes. O motorista do Honda vive no Rio de Janeiro e, após várias tentativas infrutíferas, inclusive de citação por edital, a solução foi suspender o prazo de prescrição. Foi decretada a prisão do acusado, mas o processo jaz no arquivo da secretaria do fórum.

Em outro caso, um motorista de um caminhão, morador de Contagem, atropelou e matou um pedestre em junho de 2000. Chegou a ser ouvido por carta precatória, em maio de 2001, durante a instrução do inquérito. A denúncia foi oferecida em 2002. Desde então, o caminhoneiro não foi mais localizado. A instrução do processo na fase de julgamento, quando todos os envolvidos e testemunhas são ouvidos novamente, ficou prejudicada. Citado por edital, o réu não compareceu ao fórum. O prazo de prescrição foi suspenso, e o processo é outro parado, sem previsão para conclusão.

Outra situação que ajuda a inflar a estatística da impunidade e a dor de quem perde parentes nas rodovias ocorre quando o responsável pelo acidente também morre. Nesse caso, não há como avançar com uma ação criminal. “Quando o réu morre, não tem inquérito”, informa o delegado Bruno Affonso, de Caeté. A apuração só avança quando há dúvida sobre o culpado. Nessas circunstâncias, o recurso à Justiça se limita a eventuais ações cíveis para cobrança de indenizações.

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