Estado cego e surdo aos clamores dos oprimidos.
Gilvander Luís Moreira[1]
Uma parábola do Evangelho de Lucas narra: “Havia em uma cidade um juiz que não temia a Deus e não tinha consideração para com os homens (= os empobrecidos).
Nessa mesma cidade, existia uma viúva que vinha a ele, dizendo: ‘Faz-me justiça contra o meu adversário!’” Pergunta o evangelho: “Deus não faria justiça a seus eleitos que clamam a ele dia e noite?” (Lc 18,2-3.7)
Essa parábola está acontecendo também agora no Brasil, especificamente em Belo Horizonte, MG, onde 1.900 famílias (= cerca de 10 mil pessoas) das Ocupações Camilo Torres, Dandara, Irmã Dorothy, Zilah Sposito-Helena Greco e Eliana Silva clamam por direitos humanos a partir do direito a moradia digna. Mas o Estado tem se mostrado cego e surdo aos clamores dos oprimidos que legitimamente lutam para se libertar da cruz do aluguel e da humilhação que é sobreviver de favor. Nos últimos meses desse ano são dezenas de liminares de reintegração emanadas pelo Judiciário mineiro, só na Vara Agrária de MG, em cinco dias, aproximadamente 15 liminares foram expedidas para despejar ocupações rurais.
As 350 famílias da Ocupação Eliana Silva, após serem despejadas, de forma injusta e truculenta pelo prefeito de BH (sr. Márcio Lacerda), TJMG e Governo Estadual Antonio Anastasia (com caveirão e mais de 400 policiais), sacudiram a poeira e deram a volta por cima. Durante vários dias, pouco a pouco, ocuparam outro terreno abandonado distante 1 Km da área despejada. Desta vez um empresário, com residência em São Paulo, conquistou outra Liminar de reintegração de posse. A juíza da 33ª Vara Cível autorizou o uso de força policial e, sem exigir do empresário ou do poder público nenhuma alternativa digna para as famílias, ordenou ao oficial de (In)justiça que tivesse cuidado ao “retirar” as crianças e os idosos. Será que ali existem coisas e não pessoas? Isso é autoritarismo disfarçado de altruísmo. É como o conto da barata: morde e depois assopra.
Será que não passou da hora de os juízos ao invés de mandar retirar, mandar assentar em lugar digno de ser humano morar, com todos os componentes necessários a garantir a dignidade da pessoa humana?
Em uma Audiência Pública na Comissão de Direitos Humanos da ALEMG[2], a Defensoria Pública do Estado de Minas e representante da Comissão dos Direitos Humanos da OAB/MG demonstraram que o empresário não comprovou ter a posse do terreno e que todos os terrenos onde estão as Ocupações Camilo Torres, Irmã Dorothy e a Nova Ocupação Eliana Silva e vários outros terrenos abandonados da região, áreas contíguas, tratam-se de terras que tinham por vocação original a construção de fábricas e indústrias a fim de cumprirem a função social econômica da cidade. Todavia, desde as décadas de 80/90 do século XX, estas terras foram paulatinamente repassadas do poder público para o particular e nunca foi construído nada em cima das terras. Nos terrenos onde se planejou (?) criar o Distrito Industrial do Vale do Jatobá, de fato, há 20 anos, vem acontecendo grilagem de terra e especulação imobiliária.
Em 1992, A CODEMIG - Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais -, empresa pública de capital misto, repassou para empresas vários terrenos alegando que seria para a criação do Distrito Industrial do Vale do Jatobá, em BH. Por preço irrisório e sem licitação as vendas foram feitas, mas com cláusula contratual que exigia a construção de empreendimento industrial para gerar emprego na região dentro de 1 ou 2 anos. Passaram-se 20 anos e nenhuma empresa construiu nada nos terrenos. As várias empresas que compraram da CODEMIG especularam e depois venderam para outras empresas, que após acumularem lucro venderam para outras empresas que, após especular mais venderam para outras empresas, que deixaram os imóveis em situação de completo abandono. Por lá especularam, inclusive, Banco Rural e Bradesco.
Enquanto isso, o déficit habitacional em Belo Horizonte está acima de 150 mil moradias. Só no primeiro dia de cadastramento para o Programa Minha Casa Minha Vida, há 3 anos atrás, 198 mil famílias se inscreveram. O prefeito Márcio Lacerda não fez nenhuma casa pelo Programa Minha Casa minha vida para famílias de zero a três salários mínimos. Pior! Inventou o Programa Minha Pedra Minha Vida, pois, com dinheiro público e usando o suor – força de trabalho – dos pobres mandou colocar pedras pontiagudas de concreto debaixo de viadutos da capital mineira para impedir que os mais 2 mil irmãos/ãs nossas que sobrevivem nas ruas de BH durmam debaixo dos viadutos.
Eis uma amostra da especulação que vem ocorrendo nesses terrenos, segundo o prof. Dr. Fábio Alves, histórico defensor dos direitos humanos dos pobres:
“O imóvel objeto da contenda judicial que envolve a Ocupação-comunidade Irmã Dorothy pertencia ao Estado de Minas Gerais, através da Companhia de Distritos Industriais, atual CODEMIG. Em dezembro de 2001 a CDI-MG – Companhia de Distritos Industriais de Minas Gerais - celebrou contrato com a empresa PARR PARTICIPAÇÕES LTDA, com sede em São João Nepomuceno, pelo qual o imóvel constituído pelo lote 26 – vinte e seis – do quarteirão 155 – do Bairro Jatobá – Distrito Industrial seria transferido para referida empresa, SOB A CONDIÇÃO DE, NO PRAZO DE VINTE MESES, SER REALIZADO NO LOCAL UM empreendimento industrial, gerando empregos na região. Exatos cinco meses após a celebração do referido contrato a empresa PARR Participações Ltda, contando com a anuência da CDI-MG, transfere o imóvel para o Banco Rural S/A, como dação em pagamento. Da CDI (atual CODEMIG), dita empresa adquiriu o imóvel pelo valor de R$ 121.000,00 e o repassou para o Banco Rural, cinco meses depois, por R$ 600.000,00.Mais do que 500% acima do valor pelo qual o Estado, por meio da CDI, repassou o imóvel ao particular. O encargo da implantação de um empreendimento industrial na área, outrora pública, foi remetido ao esquecimento. Assim, matreira e astutamente, um BEM PÚBLICO é transferido para o particular, sem que a sua destinação seja alcançada. Transcorridos os vinte meses estabelecidos na cláusula nada foi feito no local, e os anos se passaram desde então sem que fosse dada nenhuma destinação ao imóvel. Seis anos depois, sem que o encargo tenha sido cumprido, a mencionada CODEMIG, sucessora da CDI, permaneceu inerte. Nada fez para reverter ao patrimônio público o imóvel em questão. Pois bem, embora assentado em explícita ilegalidade, o Banco Rural S/A celebra, em 2007, Contrato Particular de Compra e Venda com a empresa TRAMMM LOCAÇÃO DE EQUIPAMENTOS LTDA e outras pessoas físicas pelo valor de R$ 180.000,00. Três anos se passaram sem que sequer a Escritura de Compra e Venda tivesse sido providenciada. O imóvel, por mais de dez anos, restou em completo abandono. O local servia unicamente parabota-fora de resíduos sólidos. Fica o registro no fato do Banco Rural ter recebido o imóvel pelo valor de 600 mil reais e o ter prometido em venda por apenas 180 mil reais. Em fevereiro de 2010, a empresa Tramm e outras pessoas físicas, sem que proprietários fossem do imóvel, celebram Contrato de Promessa de Compra e Venda com ASACORP EMPREENDIMENTOS E PARTICIPAÇOES S/A, pelo valor de R$ 580.000,00. Também esta nova empresa sequer pôs uma estaca no local. O terreno continua, em parte sendo depósito de entulhos. Em outra parte, passou a abrigar famílias que ali foram se instalando como extensão da comunidade Camilo Torres. Dessa extensão da comunidade surgiu a Comunidade Irmã Dorothy. A ASACORP EMPREENDIMENTOS E PARTICIPAÇOES S/A ingressou, junto ao Município de Belo Horizonte, com pedido de aprovação de projeto habitacional a ser financiado pela Caixa Econômica Federal. Há de se sublinhar que a região em que se encontra o imóvel é destinada a indústria e não a residência, conforme Plano Diretor do Município de Belo Horizonte.”
Outro empresário também requereu reintegração de posse alegando que a Nova Ocupação Eliana Silva ocupou parte dos 15.800 metros2 que ele diz ter comprado da CODEMIG, mas a CODEMIG move ação judicial contra ele visando retomar o terreno porque ele não construiu nenhum empreendimento industrial no local.
O Ministério Público e a Defensoria Pública de Minas ajuizaram três Ações Civis Públicas questionando essas transferências de imóveis pela CODEMIG, mas o Judiciário mineiro ignora essas irregularidades e continua determinando o desalojamento das famílias que vivem nesses terrenos. O Governador de Minas pode e deve declarar a nulidade desses contratos. Não precisa esperar a morosidade cúmplice da (In)Justiça. Só haverá paz com justiça social quando todos os terrenos do que seria (?) o Distrito Industrial do Vale do Jatobá forem destinados para um grande programa habitacional que vise a atender famílias com renda de zero a três salários mínimos. Por isso luta o MLB[3], a Nova Ocupação Eliana Silva, Camilo Torres e Irmã Dorothy e muitos militantes. Em Audiência Pública realizada na ALEMG para apurar essas irregularidades, exigimos a criação de uma CPI[4] para apurar as ações do Estado e de empresas que especulam com terras públicas onde seria (?) o Distrito Industrial do Vale do Jatobá, em Belo Horizonte. Também de acordo com o princípio da autotutela dos atos administrativos, o Estado de Minas Gerais, tendo conhecimento do fato, já deveria ter anulado os atos eivados de vícios e que representam danos ao patrimônio público. Os bens públicos devem ser usados para o bem estar das pessoas. A dignidade da pessoa humana não é um dos fundamentos do Estado? (Art. 1º da CF/88)
Diante das câmeras da TV Assembleia, mães, com suas crianças no colo, alertaram com palavras de fogo: “Vejam aqui. Minhas filhas são de carne de osso. A Nova Ocupação Eliana Silva e o MLB são a nossa causa agora. Lá em poucos dias já construímos a Creche de alvenaria. Assim posso ir trabalhar em paz, pois sei que minhas crianças estão sendo bem cuidadas na creche. Naquele terreno abandonado construiremos nossas casas. De lá só saímos no saco preto.” “Minha filhinha, agarrada em mim, diante do paredão da tropa de choque me perguntou assustada: ‘Mãe, pra que tanta polícia? Tem bandido aqui no nosso meio?’ Tive que responder para minha filha: ‘Eles estão achando que nós somos bandidos.’ Minha filha me deu um beijo e me disse: “Mamãe, a senhora não é bandida. A senhora é trabalhadora. A senhora cuida de nós.”
Felizes os que ouvem os clamores dos oprimidos e se tornam próximos de quem clama por Justiça! Aí de quem é vassalo de um Estado cego e surdo aos gritos de mães que, por amor aos seus filhos, lutam por um elementar direito: o de morar com dignidade.
Em tempo: Por que a Imprensa não trata da questão abordada acima? “É a censura”, me dizem muitos.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 10 setembro de 2012.
Eis, abaifontfxo, links de oito vídeos que corroboram o analisado e denunciado, acima. Os vídeos estão também emwww.gilvander.org.br (Galeria de vídeos).
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